sexta-feira, 22 de agosto de 2008

Quando o dique estoura

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Finais não precisam ser horríveis. É suficiente serem tristes.

Como termina um amor? Talvez não termine, somente mude para o terreno da amizade sem nos darmos conta. O carinho, o respeito, a vontade de dividir alegrias corriqueiras continuam a viver e nem sequer notamos que algo morreu. Não admitimos a possibilidade de o eterno não existir. Mas morreu algo quase imperceptível, que só notamos quando não está mais lá, entrelaçando as mãos.

Insultos e traições não são necessários para que o amor termine. Alguns, os mais rudes, clamam pela destruição total, precisam do insuportável para divisar aquilo que um dia foi claro e luminoso transformou-se num lodaçal onde ambos se afogam, puxados pelo peso do rancor, pela negativa em abandonar o navio, mesmo rodeados pelos destroços. Não é necessário exterminar tudo de belo para notar que as cores desbotaram e, apesar de ainda harmônicas, já não enchem os olhos de satisfação. A maior dor vem com a constatação de que só amor não basta - a tela que pintamos a quatro mãos pode continuar linda, mas foi, imperceptivelmente, sendo esvaziada de significados e se transformou em algo que observo, mas do qual, tristemente, não faço parte.

O espaço que o amor toma é muito grande; preenche tudo. No momento em que diminui (talvez não diminua, apenas sofra uma metamorfose: não acredito que o amor possa arrefecer, apenas se transforma em outra coisa, inominável) sentimos como se tivessem arrancado nosso fígado, nosso rim. Somos assolados pela convicção tão hesitante quanto lancinante de que não sobreviveremos à sensação de não termos mais porto, segurança, paz. A voz cálida ao telefone. Nos invade a certeza ainda mais cruel de que, depois dessa fissura, não poderemos levar isso adiante, não poderemos provocar mais dor nem infligi-la a nós mesmos. A certeza de que fomos lançados em alto-mar e já não nos cabe querer ou não - a realidade não precisa de nós.

Então vem o assombro, a sensação de trairmos o outro por já não conseguirmos ser parte de dois, pela estranha e urgente necessidade de sermos um, sozinhos, de nos vermos despejados da visão carinhosa e complacente. "Perdi algo que me era essencial, e que já não me é mais. Não me é necessária, assim como se tivesse perdido um terceiro apoio que até então me impossibilitava de andar mas que fazia de mim um tripé estável. Esse terceiro apoio eu perdi. E voltei a ser uma pessoa que nunca fui. Sei que só com duas pernas é que posso caminhar, mas a ausência do apoio me faz aflita e me assusta, era ele que fazia de mim uma coisa encontrável por mim mesma, sem querer precisar me procurar." (Clarice Lispector)

E será inútil esforçar-se para esquecer - tudo o que um dia se misturou carregará consigo partículas do outro. Talvez venha o arrependimento, o recomeço, as cores voltem a brilhar como antes - mas não se pode contar com isso. Não se pode contar com nada. O único caminho viável é viver e correr o sagrado risco do acaso. E substituir o destino pela probabilidade.

O único caminho é entregar-se à desorientação e ter fé, muita fé, de que ela nos leve a um lugar mais calmo, inabitado por nossa agonia e pelo medo de ficarmos sós.


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(ailin a.)

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