sábado, 4 de outubro de 2008

O Golpe

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Só eu sei como é difícil descalçar as longas e brutas botas. E repensar pela milésima vez se tudo bem essas meias, se tudo bem esses pés, se tudo bem meu vicio em me estalar mil vezes, me contorcer, não conseguir pisar direito nos lugares onde nunca pisei e muito menos nos lugares onde já pisei de tudo quanto foi jeito. Tudo bem essa pequena tortura dos meus ossos e dos meus pensamentos? Tudo bem eu querer correr muito rápido sem me levantar?
Enfim, botas tiradas. Elas caem, fazem barulho, sinto o primeiro golpe. Não estou mais protegida dos cacos, poeiras e rebarbas do chão querendo me lembrar que existe chão e que até chão dói.
Agora é a vez da blusa. Está tão frio. Eu quero te pedir. Por favor. Tira devagar. Tira sem deixar o golpe me matar. Eu sei, eu já tirei essa blusa tantas vezes. Não sou nenhuma inexperiente e nenhuma garotinha. Mas você me deixa desse jeito, como se tudo fosse a primeira vez. Tenho medo de vomitar, chorar, tenho medo do teto cair. Tenho medo da tristeza. Tenho medo da alegria absurda. E de você cantar o sambinha mais lindo do mundo do Cartola e eu sentir uma alegria tão grande que eu comece a tremer e seja obrigada a te mostrar o quanto não pertenço a esse mundo. E tenho medo de você olhar minha parte ET e gostar da minha parte ET e de nunca mais eu voltar a calçar minhas botas e minha blusinha. Eu tenho medo de esquentar em você e nunca mais fugir do frio. Mas ainda está frio. Então se eu tremer não fala nada, continua me olhando como se fossemos velhos amigos do mesmo disco voador que trouxe a gente pra esse mundo de pessoas que não tremem.
Chegou a hora da calça. Olha, tira devagar. Não dá risada da minha cara. Sei lá o motivo mas me atacou uma bobeira imensa e eu estou tão nervosa. Perder a virgindade da alma pode doer mais do que qualquer dor da adolescência. Então me explica um pouco porque não tem luz no seu banheiro e porque você não joga fora as correspondências de 2001 e porque você tem tantas escovas de dente e porque seu celular não toca e porque eu me sinto com esse gostosinho no peito vinte e cinco horas por dia. Me explica? E você diz que não é pra gente falar nada. E isso já é toda a explicação que eu preciso.
Tirar a roupa é tão fácil. Mas tirar todas as minhas quinhentas peles pra você, só porque é o único jeito de estar com você, tem o frio e a dor e o peso e o medo de zilhões de roupas. Então não ri de mim. Elas foram construídas por tantos dias e meses e anos e vidas. E, de repente, só porque você subiu todos os meus quinhentos andares e não levou um susto quando eu abri a porta, eu resolvi tirar as minhas quinhentas peles. Então cuida do meu sangue correndo atabalhoado, dos meus músculos tentando sobreviver a tantas descargas, das minhas células desesperadas pra entender tanta renovação e do meu peito querendo vomitar mil anos e devorar mil comidas, ao mesmo tempo, causando esse bolo enorme que não me permite dizer nada do que não sou. Eu canto pra você a minha essência e você batuca no mesmo ritmo. A gente é uma música de sucesso que só nós dois escutamos. E só agora eu entendo que isso é algo bom.
Não tem mais nada pra tirar. É a noite mais fria do ano. O mais incrível, e o que me faz querer fazer as pazes com o mundo e o que me faz querer agradecer a vida por achar que eu mereço isso, é que eu sei que, caso você vá embora, já valeu o golpe. O golpe de ar, de vento, de gelo, de tudo.

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[Tati B.]

Um comentário:

Little Demon disse...

É... a vida é bem mais interessante quando se acha alguem, compartilhar tá na nossa natureza.
Descascar-te-ei, ele disse? ^^ várias peles são criadas com o passar do tempo, como o calo que cresce com o trabalho pesado, a pele que engrossa com as surras da vida, mas nada como cuidado e carinho pra mudar isso, e devagar vamos trocando de pele, a de baixo vem mais resistente e maleável.
Te vi no acaso, parei pra dizer, belo texto, belas fotos... ;)

boa noite!

Hugo V.